terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

BAT NHA: um koan, um convite para se olhar profundamente


 
Não procure apenas o que você quer ver,
 isso seria fútil.
Não procure coisa alguma,
mas permita que o insight tenha uma chance de surgir por si mesmo.
Este insight ajudará você a se libertar.


- Nhat Hanh
Tradução por Tâm Vãn Lang
   
Bat Nha é um mosteiro nas montanhas do Vietnã Central, é uma comunidade de monges e monjas sendo perseguidos pelo governo vietnamita, e é a maior crise do Budismo vietnamita no início do século vinte e um.

Um koan (conhecido em chinês como gong an, e em vietnamita como cong an)  é um dispositivo de meditação, um tipo especial de charada zen. Os koans são resolvidos não com o intelecto, mas com a prática da consciência plena, concentração e insight. Um koan pode ser contemplado e praticado individualmente ou coletivamente, mas enquanto permanecer sem solução, um koan é perturbador. É como uma flecha perfurando nosso corpo, que não conseguimos retirá-la; enquanto ela estiver alojada ali nós não conseguimos nem estar felizes nem em paz. No entanto a flecha do koan não veio realmente do exterior, nem é um infortúnio. Um koan é uma oportunidade de olharmos profundamente e transcendermos nossas preocupações e confusões. Um koan nos força a tratar as grandes questões da vida, questões sobre o nosso futuro, sobre o futuro de nosso país e sobre a nossa própria felicidade genuína.

Alguns dos mais conhecidos koans zen incluem: “A cipreste no quintal”, “Se tudo retorna para o um, para onde o um retorna?”, “Um cachorro tem natureza búdica?”, e “Quem está invocando o nome de Buda?” Os grandes líderes e políticos do Vietnã há muito tempo praticam a arte de contemplar koans, e contribuíram com vários koans famosos de suas próprias autorias. [1] O Mestre Zen Tue Trung, cujo irmão o General Tran Hung Dao rechaçou a invasão de Genghis Khan, ofertou este poderoso koan:“Todos os fenômenos são impermanentes. Tudo o que nasce deve finalmente morrer. Mas o que nasce, e o que morre?

Um koan não consegue ser resolvido através de argumentações intelectuais, lógica ou razão, nem através de debates, tais como se o que existe é apenas a mente ou a matéria. Um koan só consegue ser resolvido pelo poder da consciência plena correta e concentração correta. Quando penetramos um koan, sentimos uma sensação de alívio, e não temos mais medos ou dúvidas. Compreendemos o nosso caminho e realizamos grande paz.

Um cachorro tem natureza búdica?” Se você pensa que ter ou não ter natureza búdica é problema do cachorro, ou se você pensa que isto é meramente um enigma filosófico, então isto não é um koan. “Para onde o um retorna?” Se você pensa que esta é uma questão sobre o movimento de uma realidade objetiva exterior, então também não é um koan. 



Se você pensa que Bat Nha só é um problema para 400 monges e monjas no Vietnã, um problema que simplesmente precisa de uma solução ‘sensata e apropriada’, então isto também não é um koan. Bat Nha se torna verdadeiramente um koan somente quando você o compreende como sendo o seu próprio problema, um problema que diz respeito profundamente à sua própria felicidade, ao seu próprio sofrimento, ao seu próprio futuro e futuro do seu país e do seu povo. Se você não consegue solucionar o koan, se você não consegue dormir, comer ou trabalhar em paz, então Bar Nha se tornou o seu koan.

‘Consciência plena’ significa lembrar-se de algo, sustentar aquilo no coração dia e noite. O koan deve permanecer em nossa consciência todo o segundo, todo minuto do dia, nunca nos deixando por um momento sequer. A consciência plena deve ser contínua e interrupta e consciência plena contínua trás concentração. Enquanto estamos comendo, nos vestindo, urinando e defecando, a praticante precisa se lembrar do koan e contemplá-lo profundamente. O koan está sempre na dianteira da sua mente. Quem é o Buda cujo nome nós devemos invocar? Quem está invocando? Quem sou eu? Você deve descobrir. Enquanto não tiver descoberto, você não realizou um avanço, você não está totalmente desperto, você não compreendeu.
***
EU SOU UM MONÁSTICO DA COMUNIDADE DE BAT NHA. Bat Nha é o meu koan e eu tenho a oportunidade de contemplá-lo profundamente em cada momento da minha vida diária. Todo dia eu contemplo o koan de Bat Nha – eu sento com ele em meditação, ando com ele em consciência plena, estou com ele enquanto cozinho, lavo minhas roupas, descasco vegetais ou varro o chão; em cada instante Bat Nha é o meu koan. Devo produzir consciência plena e concentração, porque pra mim isto é uma questão de vida ou morte dos meus ideais e do meu futuro.

Nós sabemos que tivemos êxito em nossa prática, porque apesar de toda opressão e assédio, muitos de nós em nossa comunidade ainda conseguem sorrir, e ser viçosos como flores. Nós ainda somos capazes de gerar paz e amor, e não nos deprimimos com preocupações, medos ou ódio. No entanto, existem aqueles entre nós que ainda estão sofrendo, oprimidos pelo trauma dos dias em que Bát Nhã e o Templo Phuoc Hue foram atacados. Uma das monjas ofereceu um poema de insight ao nosso professor. Ela escreveu “O Bát Nhã de ontem se tornou chuva, caindo sobre a terra, brotando a semente do despertar”. Esta monja tem apenas 18 anos, nem mesmo dois anos de ordenada, mas ela penetrou com êxito o koan de Bát Nhã.

Tudo o que queremos é praticar – porque não podemos? Os monges seniores do Vietnã querem nos proteger e patrocinar – então porque o governo os impedem? Nós não sabemos coisa alguma de política, isto não nos interessa de forma alguma – então “porque eles ficam nos acusando de interferir na política e dizendo que Bát Nhã é uma ameaça a segurança nacional? Porque foi tão importante dispersar Bát Nhã que eles tiveram que recorrer ao aluguel de uma multidão, às calúnias, fraude, surras e ameaças? Os atacantes tinham a idade de nossos pais e tios; como eles poderiam ter feito aquilo conosco? Se o governo nos proíbe de morar juntos e nos força, até a última pessoa, a dispersar em todas as direções, como irá nossa comunidade se reunir um dia? Por que será que em outros países o povo pode praticar esta tradição livremente, e nós não podemos?” Essas questões surgem implacavelmente e não vão embora. Elas anseiam serem respondidas.

Durante o tempo de meditação sentada, meditação andando ou ouvindo uma palestra de Darma; enquanto estamos cozinhando, jardinando ou fazendo qualquer trabalho em consciência plena, nós geramos a energia da consciência plena e concentração. Esta energia é como fogo que queima todos os pensamentos repetitivos e questões.

Bát Nhã ontem era felicidade. Nós podíamos ser verdadeiros conosco e viver da forma como queríamos viver. Pela primeira vez em nossas vidas estivemos em um ambiente onde podíamos falar abertamente e partilhar nossos pensamentos e sentimentos profundos com nossos irmãos e irmãs – sem suspeição, sem medo de traição. Tivemos a oportunidade enquanto jovens de servir ao mundo, no espírito de verdadeira irmandade. Esta era a maior das felicidades. Então Bát Nhã se tornou um pesadelo, mas ninguém irá tirar de nós a liberdade interior que descobrimos lá. Eu encontrei meu caminho. Se Bát Nha existe ou não, eu deixei de ter medo. Eu posso ver que Bát Nhã se tornou chuva, ajudando a indestrutível semente diamante do despertar a brotar dentro de nós. Embora nós tivéssemos sido expulsos de Phuoc Hue e Bat Nha inexistir, as sementes do despertar que foram plantadas em nossos corações nunca poderão ser levadas. Thây ensinou cada um dos alunos dele a se tornar um Bát Nhã, um Phuong Boi. [2] Nós somos continuações de Thây e sabemos que vamos construir no futuro muitos outros Bát Nhãs e Phuong Bois.

Nós já temos a semente e nós já temos o nosso caminho, portanto deixamos de temer pelo futuro – nosso e do nosso país. Amanhã teremos a chance de ajudar aqueles que hoje nos perseguem. Eles podem não ver isso agora, mas depois eles compreenderão. Nós sabemos que muitos daqueles que nos atacaram e nos fizeram sofrer já começaram a compreender a verdade. Preconceitos e percepções erradas como aquelas que construíram o Muro de Berlim eventualmente entraram em colapso e se desintegraram. Não há necessidade de preocupação ou desespero. Podemos sorrir tão brilhantemente como o sol da manhã.

***
EU SOU UM CHEFE DE POLÍCIA NO VIETNÃ. Primeiro, eu acreditava que eram justificadas as ordens de extinguir Bát Nhã dada pelos meus superiores, e que deviam ser pelos interesses de segurança nacional. Eu confiei nos meus superiores. No entanto, enquanto levava a cabo tais ordens, eu via coisas que partiram o meu coração. Bát Nhã se tornou um koan para minha vida. Eu não consigo comer, eu não consigo dormir.  Eu me debato na cama a noite inteira. Eu me pergunto: o que essas pessoas fizeram, para que eu devesse tratá-las como reacionárias e ameaçadoras à segurança nacional? Elas parecem ser tão pacíficas, mas eu não tenho paz alguma. Se eu não tenho paz no meu coração, como eu posso manter a paz na minha sociedade?




Os jovens monges e monjas não desrespeitaram lei alguma. De fato, fomos nós quem colaborou com aqueles que se apoderaram da propriedade deles. Nós os forçamos a sair do local que eles ajudaram a construir, onde eles estiveram vivendo pacificamente por anos. Nós tentamos de tudo para forçá-los a sair, mas eles se mantiveram. Eles pareciam ter tanto amor um pelo outro – parecia ter algo que os uniam. Eles viviam com tanta integridade. Embora eles fossem jovens, nenhum deles foi levado a fumar, abusar de drogas ou sexo vazio. Eles viviam de forma simples, eram veganos, sentavam em meditação, ouviam os sutras, partilhavam uns com os outros e não causavam danos a ninguém. Como podemos dizer que eles são perigosos? Eles nunca disseram ou fizeram coisa alguma contra o governo. Nós não podemos dizer verdadeiramente que eles são reacionários ou envolvidos em política. No entanto nós os acusamos disso e os expulsamos de todo jeito possível: nós os ameaçamos, cortamos a eletricidade e água, por muitos meses fomos lá toda noite molestá-los, exigir documentos de identidade, muitas e muitas vezes; nós fizemos tudo o que podíamos para romper o espírito deles. Mas eles nunca disseram uma palavra injuriosa, eles sempre nos ofereciam chá, cantavam para nós e nos pediram para que tirássemos fotos com eles.

No final nós alugamos multidões para destruir a comunidade deles, para assaltá-los e expulsá-los. Nós tivemos que estar presentes vestindo roupas à paisana para identificar e sinalizar aos líderes, para que os criminosos pudessem levá-los à força. Nenhuma vez eles revidaram. As únicas armas deles foram cantar o nome de Buda, sentar em meditação, e entrelaçar os braços para nos impedir de separá-los enquanto nós os forçávamos para dentro dos carros à espera. O governo central enviou até mesmo um Major General para coordenar o ataque. Porque nós precisaríamos mobilizar uma força tão massiva, do governo federal ao local, para dividir um grupo de jovens de mãos vazias e corações inocentes?

E porque levamos mais de um ano para os jogarem na rua? O que havia no templo que os faziam tão determinados a permanecer? Todo dia eles tinham apenas duas refeições veganas, três sessões de meditação sentada, uma palestra e uma sessão de meditação andando. Porque havia tantos deles, tão jovens e, no entanto, vivendo tão harmoniosamente um com o outro? Alguns deles tinham diplomas universitários, alguns eram filhos e filhas de funcionários de alto calão, alguns tinha tido carreiras e trabalhos bem remunerados; mas eles deixaram tudo isso pra trás por uma vida humilde. O que lá tinha de tão bom que atraía tantos jovens? Como podemos apenas dizer que eles foram ludibriados pelas palavras doces de uma pessoa que vive no ocidente para se opor ao governo?

Minhas ordens vieram de cima e eu tive que obedecer; mas eu me sinto profundamente envergonhado. Primeiro eu pensei que aquelas eram apenas medidas temporárias, por algo mais benéfico para o país, pela preservação da unidade nacional. Agora eu sei que toda a operação foi enganosa, cruel e ofensiva à consciência humana. Eu sou forçado a guardar estes pensamentos para mim mesmo. Eu não ouso partilhá-los com os funcionários da minha unidade, quanto mais com os meus superiores. Eu não posso avançar e não posso voltar atrás; eu sou uma peça na engrenagem e não consigo cair fora. O que devo fazer para ser verdadeiro comigo mesmo?
***
EU SOU UM MEMBRO DA IGREJA BUDISTA DO VIETNÃ. Bát Nhã me assombra noite e dia. Eu sei que estes jovens monásticos estão praticando o verdadeiro Darma. Todos os que tiveram contato com eles confirmam isso. Então porque nós somos tão impotentes para protegê-los? Por que temos que viver e nos comportar como empregados do governo? Quando irei realizar o meu sonho de praticar religião sem interferência política? Durante os períodos de colonização estrangeira, dos regimes Diem e Thieu, os budistas enfrentaram dificuldades; mas os monásticos nunca foram tão rijamente controlados como são agora. O que os juízes eclesiásticos querem hoje é um Budismo baseado na fé cega e nos rituais, não um Budismo que ofereça uma orientação espiritual verdadeira e que tenha a capacidade de promover um modo de vida ético. Eles temem um Budismo que ofereça liderança espiritual, e somente aceitam organizações religiosas que possam ser controladas e manipuladas. Mas quando Buda era vivo, ele se recusou a se submeter à dominação, mesmo aquela do Rei Ajatasattu. Durante a colonização francesa e dos regimes Diem, Ky e Thieu, nossos ancestrais lutaram por liberdade. Por que não estamos continuando aquele trabalho? Por que nos permitimos nos tornar instrumentos de uma política que está pisoteando nossos ideais de servir, a nossa nobre aspiração de despertar?

Primeiro, eu pensava que se concordasse com o governo, pelo menos eu teria uma chance de fazer algum ‘trabalho de Buda’, enquanto se me opusesse totalmente ao governo eu não seria capaz de fazer coisa alguma. Então eu tive de sofrer silenciosamente as críticas e desdém dos meus colegas por estar no sistema. Depois de um tempo, contudo, eu vi que era graças à habilidade e coragem daqueles de fora da Igreja Budista de expressarem seus protestos que eu tinha permissão de realizar o trabalho budista, ainda que de forma limitada. Quando a história do Budismo Vietnamita for escrita, como irei responder a isto? O meu objetivo se tornou parte de um sistema que existe para monitorar e controlar os budistas.

Aquele venerável, que foi pressionado a não mais patrocinar os monges e monjas para que ficassem e praticassem no seu templo, não teve força para resistir. Ele foi compelido a trair seu professor e amigos e quebrar um voto profundo tomado há apenas alguns anos atrás. Isto é uma tragédia pra ele. Mas quem é aquele monge? Ele é outra pessoa, ou é ninguém mais do que eu mesmo? Ele está em mim. Eu também estou sendo pressionado, e não ouso fazer ou dizer o que realmente acredito para proteger os meus filhos espirituais e os jovens irmãos e irmãs. O meu desejo profundo não é ‘guiar as futuras gerações e retribuir minha dívida de gratidão a Buda?’ Se sim, então como posso justificar o fato de ter feito nada pra ajudar enquanto assistia os jovens monges e monjas, meus descendentes espirituais, serem oprimidos, humilhados e pisoteados? Como posso ousar olhar nos olhos dos meus filhos espirituais, minha continuação? Qual é o meu verdadeiro rosto? Quem sou eu?

Nós somos irmãos e irmãs, filhos de Buda. Seria porque nossa prática de irmandade não é suficientemente sólida que eles foram capazes de nos dividir, que nós caímos em acusações e ódios um pelo outro? De acordo com os ensinamentos de Buda da não dualidade, mesmo que sigamos a Igreja Budista Unificada ou a Igreja Budista do Vietnã, nós ainda somos irmãos e irmãs de uma mesma família. Nós podemos fazer o que temos que fazer sem lutar ou se opor um ao outro, sem ter que considerar um ao outro como inimigo.  Será que esta animosidade surgiu porque nossa prática ainda está fraca? Será que isto aconteceu porque nosso poder espiritual ainda não é suficientemente grande? Mas nós certamente aprendemos uma lição: se nós pudermos nos aceitar mutuamente e nos reconciliar, ainda poderemos ressuscitar nossa irmandade, inspirar confiança de nossos companheiros cidadãos e sermos modelos exemplares para todos. Embora tenhamos deixado para quando já é tarde demais, a situação ainda pode ser salva. Apenas um momento de despertar já basta para mudar a situação.

Parece que os monges e monjas de Bát Nhã aprenderam esta lição. Mesmo quando eles foram atacados e expulsos nunca mostraram ressentimento algum para com o venerável abade que os acolheram durante estes anos. Eles sabiam que ele estava sob forte pressão para forçá-los a ir embora e que eventualmente ele iria se desmoronar. Se nós da Igreja Budista estivemos sendo acossados ao ponto de trair nossos irmãos e irmãs, isto se deu porque nossa integridade espiritual ainda não está suficientemente forte. Como podemos ser sinceros e determinados o suficiente em nossa prática diária para alcançar a força espiritual que precisamos? Somente quando compreendemos podemos amar. Quando amamos uns aos outros não conseguimos ver um ao outro como inimigo. Se virmos uns aos outros como inimigos, seremos vítimas de esquemas de divisão e separação.

Bát Nhã não é apenas um problema para ser resolvido pela Igreja Budista Central do Vietnã. Bát Nhã é um koan, o desafio de nossas vidas. Como podemos resolvê-lo de modo que não fiquemos envergonhados diante dos nossos ancestrais? Por que não consigo partilhar os meus pensamentos e sentimentos com os meus amigos da Igreja Budista Central do Vietnã? Por que não temos permissão de harmonizar nossas visões? Por que temos que esconder nossos pensamentos e sentimentos?

Os budistas vietnamitas estiveram respeitando e seguindo Buda, o Darma e a Sanga durante os últimos dois mil anos. Mas agora foram contratados grupos de pessoas que calçavam sapatos dentro do Salão de Meditação de Buda, que colocaram faixas ofensivas sobre o altar, que gritaram e amaldiçoaram e jogaram excrementos humanos em veneráveis monges, que destruíram objetos sagrados, e que atacaram violentamente, bateram e expulsaram monges e monjas dos templos deles. Foram funcionários do governo que contrataram eles e lhes disseram que eles eram budistas. Isto é uma mácula horrível na História do Budismo no Vietnã. Isto nos causa repugnância e nos deixa nauseado, no entanto, porque não ousamos protestar? Será que a Igreja Budista do Vietnã, cujos membros foram caluniados e falsamente acusados e emoldurados pelo governo, poderia livrar-se deste insulto e provar a inocência dos budistas vietnamitas?
***
EU SOU UM MEMBRO DO ALTO CALÃO DO GOVERNO COMUNISTA DO VIETNÃ. Bát Nhã e uma oportunidade para eu olhar a verdade profundamente e encontrar paz no meu próprio coração e mente. Se eu não tiver paz, como posso ser feliz? Mas como posso ter paz, quando não acredito realmente no caminho que estou andando, e especialmente quando eu não tenho fé ou confiança naqueles a quem chamo de meus companheiros? Podemos ser companheiros de cama, mas será que estamos sonhando sonhos diferentes? Porque não posso partilhar os meus reais pensamentos e sentimentos com aqueles a quem chamo de companheiros? Tenho medo de ser denunciado? De perder a minha posição? Porque todos nós temos que dizer exatamente as mesmas coisas quando nenhum de nós acredita nelas? Isto não é o caso do The Emperor´s New Clothes [As novas roupas do imperador], onde todos os membros da corte do imperador juram que o imperador está vestindo um lindo manto, quando de fato ele está completamente nu?

O meu maior sonho é que minha própria felicidade esteja em harmonia com a do meu país. Assim como as árvores têm suas raízes e a água tem sua nascente, nossa terra natal tem sua herança de discernimento espiritual. A dinastia Ly foi a mais pacífica e compassiva da história do nosso país. Sob a dinastia Tran, a unidade do povo era suficientemente forte para capacitá-lo a rechaçar os ataques do Norte. Esta unidade foi possível graças à contribuição do Budismo enquanto um caminho espiritual de aceitação e inclusão, que conseguia coexistir com outras tradições éticas e espirituais, tais como o Taoísmo e Confucionismo, e assim construir um país que nunca precisou expulsar ou eliminar alguém.

Eu tive a oportunidade de estudar. Eu sei que o Budismo não é uma religião teísta, mas é solidamente humanista. O budismo é sem preconceitos e dogmas; ele tem o espírito de questionamento racional. No novo século, o Budismo pode caminhar de mãos dadas com a ciência. ‘Ciência’ aqui significa o espírito de questionamento científico, a disposição de abrir mão das antigas visões para abraçar as novas, mais próximas da realidade. A ciência moderna foi muito além da ciência tradicional, especialmente na área de física quântica. O que eu considerava ciência no passado ainda é ciência hoje? Mente e matéria são apenas duas manifestações de uma realidade. Uma contém a outra e uma é dependente da outra para se manifestar. A ciência moderna está colocando toda sua energia em superar formas dualistas de pensar – sobre mente e matéria, dentro e fora, sujeito e objeto, espaço e tempo, massa e velocidade e assim por diante. Se eu ainda estiver aprisionado em minha raiva, ansiedade, desejo ardente e discriminação, minha mente não consegue ficar suficientemente calma e concentrada para compreender a verdade. Não importa os quão sofisticados sejam os instrumentos que eu uso, por detrás de toda aquela tecnologia ainda existe a mente que observa.

No meu coração eu sei que o povo apoiou a revolução tão fortemente porque eles amavam o país deles, não uma ideologia. Se o apoio do povo tivesse se baseado somente em ideologia e não no amor profundo deles pelo país, nós certamente teríamos fracassado. Eu sei que nos anos 1940 alguns de nós, a partir de uma devoção fanática e fervorosa à ideologia, esmagamos e assassinamos revolucionários lutando lado a lado de nós contra os agressores estrangeiros. Até a presente data as feridas daquele tempo ainda não sararam.

Assim como para luta de classes, eu devo me perguntar: que classe está no poder agora? O proletariado ou os capitalistas? Existe essa coisa de ‘Capitalismo do Povo’, ou isso é apenas uma ficção conveniente?

Se nós quisermos ser bem sucedidos, o programa de ação do partido deve refletir os desejos profundos do povo (Y Dang, Long Dan). O desejo profundo do povo é que os monges e monjas tenham liberdade de praticar e ajudar o mundo de acordo com os ideais deles, em conformidade com as leis da região

O desejo profundo do povo é que cada cidadão seja capaz de se expressar sem medo de denúncias ou prisões. O desejo profundo do povo é separar religião de negócios políticos, e retirar a política da religião. Se os desejos profundos do povo forem satisfeitos, naturalmente haverá unidade e o partido será apoiado. Se o partido estivesse em harmonia com os corações do povo, o partido não mais precisaria apelar por apoio e unidade. Este é o desejo do povo. Qual é o programa de ação do partido?

Eu sei que durante as dinastias Tran e Ly, o espírito de inclusão do budismo uniu toda nação. Graças àquele espírito, todos os que amavam o país deles tiveram uma oportunidade de contribuir com o trabalho de construir e proteger a nação e ninguém foi excluído. Este espírito de inclusão no Budismo é chamado de ‘equanimidade’, e é uma das quatro virtudes budistas, ao lado de bondade amorosa, compaixão e alegria. Inclusão é uma herança espiritual preciosa, um tesouro cultural. Eu sei que durante as dinastias Ly e Tran, reis e políticos praticaram o budismo tal como o povo praticou. Mantendo os preceitos budistas, seguindo uma alimentação vegetariana e realizando bons trabalhos, eles foram capazes de ganhar a fé e confiança do povo.

Como podemos erradicar os terríveis males sociais de abuso de drogas, prostituição, jogos de azar, violência, corrupção e abuso de poder, quando os funcionários responsáveis pela abolição deles estão eles mesmos prisioneiros destes mesmos males? Como pode os programas de ação do governo dos ‘distritos culturais’ e ‘ vilarejos culturais’ ter sucesso um dia se estão baseados meramente em descuidadas inspeções e punições? Quem é que precisa ser inspecionado e quem é que precisa ser punido?

Eu sei que qualquer família que pratica e mantém os treinamentos da consciência plena desfruta de paz, alegria e felicidade. Nos últimos dois mil anos, o Budismo tem ensinado ao povo a viver uma vida ética, a ser vegetariano e manter os treinamentos. Seguir uma dieta vegetariana é um sinal de domínio sobre a mente do anseio, de não se entregar aos desejos. Quando os budistas adotam a dieta vegetariana, mantém os treinamentos e fazem boas ações, eles fazem isto voluntariamente e não à força ou temendo punições. Neste exato momento, os jovens monges e monjas de Bát Nhã estão indo nesta direção, revigorando este modo de vida ético. Eles têm o potencial de serem bem sucedidos. Então porque queremos reprimi-os e extingui-los? Será que tememos que se eles tiverem o apoio das massas será em prejuízo nosso? Por que eu não consigo abrir o meu coração para praticar como eles, para ser um com eles e me beneficiar do apoio deles? Por que não conseguimos fazer como os reis das dinastias Tran e Ly fizeram? Somente porque somos Marxistas, isto significa que não temos o direito de tomar refúgio em Buda, Darma e Sanga, ser vegetariano e praticar os treinamentos da consciência plena?

Eu sei que muitas pessoas no partido e no governo hoje alegam ser receptivas à religião e espiritualidade. De fato, todos os funcionários mais importantes acreditam em coisas como feng shi, destino, poderes psíquicos e até mesmo a idéia de expandir o tempo de vida de uma pessoa transferindo os anos de vida de outra pessoa. Elas passaram de um extremo ao outro. E, no entanto, externamente elas alegam não serem supersticiosas.

Os reis Ly e Tran realmente acreditavam no caminho da virtude e da espiritualidade. Muitos deles viveram vidas éticas exemplares e as pessoas tinham confiança neles e eram inspiradas a fazer o mesmo. Um rei soube praticar os treinamentos da consciência plena, seguir uma dieta vegetariana, enviar cobertores para presídios, e foi até pequenas cidades e vilarejos para se encontrar com o povo e ver a verdade de como ele vivia e do que sofria. Um rei que sabe fazer meditação sentada, contemplar profundamente koans, praticar começando de uma nova maneira seis vezes por dia, escrever comentários nos sutras, tomar refúgio no sábio conselho de um mestre Zen a quem ele respeita como professor nacional, e conceder o trono ao seu filho para se tornar um simples monge na montanha Yen Tu – tal rei pode ser um grande exemplo de moralidade para toda nação.

Nos dias de hoje estamos sempre urgindo os funcionários do governo e uns aos outros para “estudar e seguir o exemplo virtuoso de Ho Chi Minh”. Mas quem está vivendo um bom exemplo para dar aos seus companheiros? O Budismo Mahayana ensina que “Você tem que ser esta pessoa. Você tem que ser o modelo exemplar. Você mesmo deve viver aquela maneira. Somente então você inspirara outros a fazer o mesmo”. Eu tenho que ser aquela pessoa. Eu sei que corrupção e abuso de poder se tornou uma catástrofe nacional. Estivemos lamentando isso já há muitos anos, e, no entanto, a situação só fica pior a cada dia que se passa. Por quê? Seria porque eu só sou capaz de me vangloriar com orgulho do glorioso passado dos meus ancestrais, e de fato não sou capaz de fazer como eles fizeram? E hoje, quando existem jovens realmente fazendo isto, por que nós os bloqueamos e reprimimos?

A situação de Bát Nhã pode ter começado com uma agência de viagem pertencente a um ilustre policial. Logo envolveu hotéis, depois vistos e eventualmente o abuso de poder e o exercício da retaliação. Agora isto se tornou um programa de ação que todo o país deve seguir. Talvez eu não tenha me dado tempo de examinar isso. Eu apenas sigo as falsas reportagens e casualmente permito as pessoas que estou supervisionando que mintam, enganem e oprimam estas pessoas gentis que nunca causaram qualquer perturbação à sociedade. No final eu me coloco numa posição onde me torno o inimigo daquelas mesmas coisas que um dia apreciei. Os meus verdadeiros inimigos estão realmente fora de mim? Meus inimigos estão dentro. Eu tenho coragem e inteligência suficientes para enfrentar minha própria fraqueza? Esta é a questão fundamental.

As práticas de Plum Village oferecem uma rara oportunidade de modernizar o budismo no Vietnã; os últimos quatro anos provaram e efetividade delas. Por que estamos nos permitindo ser pressionados por nosso poderoso vizinho para perseguir e destruir um tesouro vivo tão precioso? O que conseguiremos de tão precioso em troca por destruir este tesouro que já temos?

A melhor maneira de celebrar o aniversário de mil anos de Hanoi é lutar para praticar, para viver como nossos grandes ancestrais Ly Cong Uan, Tran Thai Tong, Tran Thanh Tong, Truc Lam Dai Si, e Mestre Tue Trung. Eles eram políticos, mas ao mesmo tempo eles viveram uma verdadeira vida espiritual que acreditavam nela. O que eu tenho para me orgulhar, além das lendas dos meus ancestrais? Eu perdi meu ideal revolucionário. Eu exterminei a chama sagrada da minha aspiração. Meus companheiros não são mais meus companheiros verdadeiramente porque a chama sagrada deles do ideal revolucionário se extinguiu. Eles só estão no partido por interesse próprio, fama e status. A tradição de Plum Village é parte da herança cultural do meu país e está contribuindo para uma ética cultural global – não só na teoria, mas o que é mais importante, na prática. Então muitas pessoas de toda parte do mundo ouviram sobre esta tradição e estão se beneficiando destes ensinamentos. Eu deveria estar orgulhoso disso, então porque eu permiti que a tradição fosse atacada e extinta na própria terra onde ela nasceu? Estas são perguntas que, se eu permito que penetrem e ajam nas profundezas de minha consciência, podem despertar sabedoria interior. Isto me dará o discernimento que preciso para ver o caminho e saída que tanto anseio.
***
EU SOU UM CHEFE DE ESTADO OU MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Meu país é ou não é um membro do Conselho de Segurança ou da Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Eu sei que eventos como Bat Nha, Tam Toa, Tiananmen Square e a incorporação do Tibete são violações sérias dos Direitos Humanos. Mas devido ao interesse nacional, como nosso país quer continuar a fazer negócios com eles, porque queremos vender armas, aviões, trens velozes, plantas de poder nuclear e outras tecnologias, porque queremos um mercado para os nossos produtos, eu não posso me expressar francamente e tomar decisões verdadeiras que possam gerar pressão naquele país para que eles parem de violar os direitos humanos.

Eu me sinto envergonhado. Minha consciência não está em paz, mas como eu quero o sucesso do meu partido e do meu governo, eu digo a mim mesmo que estas violações não são suficientemente sérias para o meu país tomar uma posição. Parece que eu também estou aprisionado num sistema, num tipo de maquinaria, e eu realmente não consigo ser eu mesmo. Eu não sou capaz de expressar os meus sentimentos reais ou protestar contra a situação.  O que tenho que fazer para conseguir a paz que tanto necessito? Bát Nhã é, é claro, uma situação no Vietnã, mas ela se tornou um koan para um líder político de alta categoria como eu. Que caminho eu devo tomar para realmente ser eu mesmo?

***
O koan “Bát Nhã” é um koan de todos; é o koan de cada indivíduo e cada comunidade. O koan pode ser praticado por um monástico de Bát Nha, por um monge ou monja estudando em um Instituto Budista no Vietnã, um Venerável na Igreja Budista do Vietnã, um policial, um Chefe de Departamento, um padre católico, um ministro protestante, um membro Politburo, um Presidente do Comitê Popular de uma cidade, um Secretário do Partido Provincial, um membro do Comitê Central, o editor de um jornal ou revista, um líder político internacional ou embaixador. Bát Nhã é uma oportunidade, porque Bát Nhã pode ajudar você a ver claramente o que você não podia – ou não queria – ver antes.

Na tradição Zen, existem retiros de sete, vinte e um e quarenta e nove dias. Durante estes retiros, o praticante investe todo o coração e mente no koan. Cada momento da vida diária deles é também um momento de olhar profundamente: enquanto estão sentando, andando, respirando, comendo, escovando os dentes ou lavando as roupas. Em cada momento a mente está concentrada no koan. O retiro mais popular é o de sete dias. Todo dia o praticante tem a chance de interagir com o mestre Zen na sessão de orientação direta. O mestre Zen oferece orientação para ajudar o praticante a direcionar a concentração deles no caminho correto, abrindo a mente deles e ajudando eles a ver, mostrando-lhes a situação para que a verdade possa se revelar claramente.

Nas sessões de orientação direta a verdade não é transmitida do mestre ao praticante. Os praticantes devem realizar a verdade por eles mesmos. O mestre Zen pode dar orientação por cerca de dez minutos, para abrir a sua mente e salientar coisas, e depois todos retornam aos seus assentos para continuar a contemplar profundamente. Às vezes há centenas de praticantes, todos sentando juntos no salão de meditação, olhando para a parede. Depois de um período de meditação sentada, tem um período de meditação andando. Os praticantes andam vagarosamente, cada um e todos os passos os trazem de volta ao koan. Durante as refeições, os praticantes podem comer sentados em suas almofadas de meditação. Enquanto comem eles contemplam o koan. Urinando e defecando também são oportunidades de olhar profundamente. O Nobre Silêncio é essencial para a investigação meditativa, e é por isso que fora do salão de meditação tem sempre uma tabuleta dizendo “Nobre Silêncio”.

Se você quer ser bem sucedido em sua prática de koans, você deve ser capaz de abrir mão de todo conhecimento intelectual, de todas as noções e de todos os pontos de vista que você atualmente sustenta. Se você estiver aprisionado a uma opinião pessoal, ponto de vista ou ideologia, você não tem liberdade suficiente que permita ao insight do koan romper dentro de sua consciência. Você tem que largar tudo o que encontrou antes, tudo o que você tinha previamente tomado como sendo a verdade. Enquanto acreditar que já detém a verdade nas mãos, a porta para sua mente está fechada. Mesmo que a verdade chegue batendo, você não será capaz de recebê-la. Conhecimento atual é um obstáculo. Budismo requer liberdade. Liberdade de pensamento é a condição básica para o progresso. Este é o verdadeiro espírito da ciência. É precisamente neste espaço de liberdade que a flor da sabedoria pode desabrochar.

Na tradição Zen, comunidade é um elemento muito positivo. Quando centenas de praticantes estão juntos olhando silenciosamente e profundamente, a energia coletiva de consciência plena e concentração é muito poderosa. Esta energia coletiva nutre sua concentração a cada minuto e cada segundo, dando-lhe a oportunidade de avançar na sua prática do koan. Este tipo de ambiente é muito diferente do de uma conferência, discussão ou reunião. A firme disciplina de sua prática de meditação, o ambiente favorável para concentração, assim como a orientação do mestre Zen e apoio silencioso dos companheiros praticantes, tudo lhe proporciona muitas oportunidades de sucesso.

As sugestões dadas acima podem ser vistas como orientações diretas para ajudar vocês na prática da contemplação profunda. Vocês devem compreender as palavras como um instrumento, não como a verdade. Elas são a jangada que pode lhe levar para outra margem; elas não são a própria margem. Uma vez que vocês tenham alcançado a outra margem, devem abandonar a jangada. Se tiverem êxito na contemplação profunda, vocês terão liberdade, serão capazes de ver seu caminho. Então vocês podem simplesmente queimar estas palavras, ou jogá-las fora.

Eu desejo a todos vocês sucesso no trabalho de contemplar profundamente o koan de Bát Nhã.

Mestre Zen Thich Nhat Hanh

Sitting Still Hut
Upper Hamlet
Plum Village, France