segunda-feira, 12 de outubro de 2009
A última meditação caminhando
Escrito por uma jovem irmã monástica do Mosteiro Bát Nhã
1 de outubro de 2009
No domingo, 27 de setembro de 2009, nós tivemos a oportunidade de praticar a meditação sentada e depois fazer a meditação caminhando juntos ao redor do salão de meditação “Asa de Garuda”. Estava chovendo torrencialmente naquele dia. As vestes monásticas dos meus irmãos e irmãs estavam ensopadas, mas continuamos a andar juntos uns dos outros em paz, e com amor e compreensão. Dentro de mim, a mente de amor e de fé reacendeu brilhantemente.
Nós nunca imaginaríamos que aquela seria a nossa última meditação caminhando naquele adorável pedaço de terra, que era cheio de vida. A atmosfera ainda era pacífica, e todos estavam prontos para a próxima atividade [um Dia de Consciência Plena]. Em nosso curso “O coração dos ensinamentos de Buda”, o tópico sobre os quatro nutrientes iria ser apresentado, mas teve de ser cancelado. Talvez aquela apresentação tenha se tornado a palestra não-verbal de Darma, manifestada através do nosso insight, amor e profunda irmandade.
Às 8h da manhã, todos nós retornamos aos nossos quartos e sentados em nossas camas ficamos esperando. A verdade era que eu não sabia o que eu estava esperando; eu somente pensava que seria a nossa programação rotineira de domingos dos últimos meses. Não tinha tido um domingo sem que tivéssemos ouvido gritos e maldições. Só sabíamos sentar quietos e manter nossas mentes calmas e receptivas.
Às 9h da manhã, nós [irmãs do alojamento Nuvem da Montanha] recebemos as notícias de que o alojamento dos irmãos Fragrante Folha de Palmeira estava sendo atacado. Tudo estava sendo destruído e jogado na chuva. Muitos irmãos mais velhos e mais novos foram arrastados para fora e levados embora…. Estávamos chocadas com as notícias, e não acreditávamos que aquilo pudesse ser verdade. Logo depois disso, eu vi que um irmão mais velho e um jovem noviço estavam correndo em direção ao alojamento Nuvem da Montanha em suas vestes monásticas ensopadas. Eles só tiveram tempo suficiente de trazer com eles os seus Sanghatis [mantos monásticos de cerimônia] enrolados nos ombros...
Às 10h 30m, tivemos permissão de ir pegar comida. Eu estava no grupo da limpeza, por isso fiquei esperando para limpar e guardar as coisas de volta antes de ir comer. Logo que sentei na esteira de palha e peguei a minha tigela da ronda de mendicância, disseram-me que eu deveria pegar minhas coisas imediatamente. Todos nós deveríamos colocar no chão nossas tigelas de mendicância e ir empacotar nossos pertences. Em nossas mentes, só pensávamos em levar conosco nosso Sanghatis, tigelas de mendicância, certificados monásticos, e documentos de identificação. Tudo bem se as pessoas chegassem e levassem o resto de nossos pertences para seus próprios usos. Compreendíamos que elas eram apenas vítimas da pobreza e da luta constante. Elas eram desafortunadas de terem crescido e vivido em ambientes negativos, de forma que facilmente receberam uma “lavagem cerebral” e foram incitadas por informações distorcidas. De fato, elas merecem amor tanto quanto nós merecemos. Somos vítimas da violência. Mas elas são vítimas da ignorância e da falta de reflexão. Apenas 70 ou 100 mil dongs [moeda vietnamita] foram suficientes para alugá-las para fazer algo pernicioso. Quão lamentável isto é! É este o valor de um ser humano? E os dias e meses seguintes, quando elas estiverem sofrendo, atormentadas pelas suas próprias consciências – quem irá pagar o salário delas?
Às 11h 30m, seis homens andaram ao redor do nosso alojamento e bateu à porta das irmãs gritando: “As monjas tem que deixar este lugar. Não nos façam ter raiva e ferir vocês. Se vocês não partirem deste local, terão de sofrer as conseqüências”. Todos nós sentávamos próximas umas das outras calmamente. Ouvíamos os sons das janelas de vidro sendo quebradas e caindo. As pessoas entraram em cada quarto e nos arrebanharam para fora. Elas seguravam longas barras de ferro, que seriam usadas para nos bater se resistíssemos. Uma a uma, andamos para fora do nosso quarto e fomos para o jardim da frente. Chovia torrencialmente. Talvez os deuses do céu também estivessem chorando por nós.
Quando todo mundo estava lá embaixo no jardim da frente, nós verificamos entre nós e descobrimos que a jovem irmã Cong Nghiem não estava conosco. Ela teve um acidente recentemente e não conseguia se mover. Nós implorávamos aos tios [os homens atacantes] que nos permitissem retornar e carregá-la lá pra baixo. Todas nós ficamos muito comovidas olhando nossa irmã mais velha carregando nossa irmã mais nova nas costas. Quanto mais olhávamos, mais sentíamos dó também dos tios. Teve um tio com cerca de 50 anos, que vestia um capacete e andava como um manco. Enquanto ele estava estraçalhando as janelas, cortou-se e estava sangrando muito. Nós corremos até o armário dos primeiros socorros, que estava completamente destruído. Tivemos sorte de encontrar algumas bolas de algodão, gaze e álcool para limpar e cobrir a ferida dele. Olhando dentro dos olhos dele, eu vi que ele estava profundamente comovido; ele compreendeu que nós não o odiávamos, mas pelo contrário, cuidávamos dele de todo o coração. A verdade é que durante este tempo, dentro de mim, não havia alguém para amar ou alguém para odiar. Eu não pensava sobre o que eles tinham feito a nós. Tinha somente aquela pessoa que precisava da nossa ajuda. Depois de cobrirmos a ferida dele, ele baixou a cabeça e nos agradeceu e ficou quietinho num canto, olhando-nos ali em pé próximas uma das outras debaixo da chuva e da tempestade. Ele parou de ser violento. Depois eu o vi partindo calmamente. Naquele momento, todos nós estávamos juntos e a salvos. Ninguém estava preso por dentro. Sentimo-nos tão felizes ao compreender que amávamos uns aos outros, e que poderíamos sacrificar nossas vidas uns pelos outros, pelos nossos ideais, e por este caminho de compreensão e amor.
Por volta das 11h da manhã, cerca de 100 mulheres e homens desceram até o alojamento das irmãs. Todas as vezes que viam um monge, eles pulavam, rasgavam as roupas dele e batiam nele. Quando tentávamos proteger nossos irmãos e irmãs, sofríamos o mesmo destino – eles nos derrubavam; as mulheres usavam sombrinhas e rochas para bater e chutar as nossas mãos e costas. Algumas até mesmo nos esbofetearam no rosto. Mas nós só sabíamos agüentar ou nos esquivar. Não fizemos nada mais. Enquanto tudo aquilo acontecia a nós, não derramamos uma gota de lágrima, chorando ou se lamentando. Somente sentíamos que nossa sociedade hoje em dia está cheia de violência, ódio e medo. Por causa disto, precisávamos proteger e salvaguardar nossos ideais, trazendo compreensão e amor à humanidade. Dói eu ver que a nação vietnamita, amorosa, gentil e étnica – que os quatro mil anos de história pelos quais o Vietnã foi elogiado, agora se perderam nas mãos do povo vietnamita. A dor, a vergonha, é grande demais. Tudo bem o espancamento e desalojamento, porque sendo monges e monjas, nós não temos propriedades para nos apegarmos. A única coisa que nos dói é que a dignidade e humanidade de nossa sociedade tenham sido rebaixadas a um nível tão baixo. Eu pensei para mim mesma: O quão feliz eu me sentia lendo a história daqueles das dinastias Ly e Tran antes de mim! Temos o direito de elevar nossas cabeças e sentir orgulho nacional. No entanto, nossos filhos e as futuras gerações, quando relembrarem os eventos em Bát Nhã, terão que baixar a cabeça com vergonha. O tempo apagará todos os vestígios físicos, mas as feridas dentro do coração, a vergonha, o ódio, o medo, e a violência serão transmitidas para sempre. Com uma transmissão como estas, a ética de nossa sociedade não poderá fazer outra coisa senão declinar vertiginosamente. O quão lamentável seria isso! Por causa disso, nós, irmãos e irmãs, falamos a partir dos nossos corações; não podemos plantar e espalhar mais sementes negativas como essas. Temos que aguar esta terra árida e espinhosa da mente humana com as gotas do néctar benfazejo, para que possamos reviver as flores da compreensão, amor, inclusão e eqüidade. Somente por isso nós – que estamos carregando em nossos corações o grande amor, o grande voto – estamos determinados a não permitir que estas sementes prejudiciais se desenvolvam mais no coração de nosso povo. Nós amamos o som da frase “minha terra natal” [pátria, em inglês, “motherland”, traduz literalmente por terra-mãe]. Amamos o povo vietnamita. Mesmo que eles nos acusem como traidores, mesmo que eles nos batam, nós nunca quereríamos que acontecesse de os pintinhos de uma mesma galinha atacar e machucar uns aos outros. Então, desde o momento em que fomos forçados a sair para a rua e ficar em pé na chuva, aceitando acusações e pancadarias, suportando as águas sujas arremessadas em nossas faces, nós continuamos de pé próximas umas das outras e protegendo uma à outra. Embora tenhamos sido acossadas, espancadas, puxadas e empurradas, não abandonaríamos umas as outras.
Às 17h daquele dia, fomos forçadas para fora do portão do alojamento Nuvem da Montanha. Foi doloroso para nós ver que não poderíamos proteger nossos irmãos mais velhos Pháp Hoi e Pháp Sy da violência dos tios. Nós os olhávamos sendo levados com profunda dor. Eles tentaram nos afugentar, mas nós todas ficamos em pé silenciosamente sob a chuva. Estávamos com frio e fome. Somente quando o tempo escureceu lá fora, nós calmamente andamos para o alojamento “Coração Cálido” de nossas irmãs. Ficamos comovidas com a maneira como elas nos cumprimentaram e nos receberam. Elas foram capazes de acender duas lareiras, para que pudéssemos nos aquecer. Então elas cozinharam talharim para nós comermos. Todo mundo sentia um ardor nos olhos. Era da fumaça ou do amor um pelo outro? Naquela noite, o alojamento “Coração Cálido” foi deixado temporariamente em paz. Nós sentamos próximas umas das outras e olhávamos umas para as outras cuidadosamente por muito tempo. Sabíamos que seria difícil para nós estarmos unidas daquele jeito novamente. Mesmo estando cansada, eu não consegui dormir. Assim que eu me deitei, a imagem de Thây Pháp Hoi e dos outros irmãos sendo levados surgia em minha mente. Eu temia que aquela tivesse sido a última imagem e a última vez que eu pudesse vê-lo. Se isto fosse verdade, nós então apreciaríamos ainda mais profundamente o silencioso sacrifício dele. Afirmaria ainda mais nossa confiança em nosso caminho de prática. “Repouse seguro, querido Irmão mais velho. Você está presente em nós. Você nos transmitiu a sua tranqüilidade, sua calma e sua solidez nestes momentos. Nós nunca o perderemos”. Naquela noite, a chuva e a tempestade continuavam fortes. Eu sentei e olhei em volta do nosso quarto, o dormitório “Phuong Vy 2” . Vendo minhas irmãs dormindo, meu coração movia-se como ondas de amor. Se o meu sacrifício trouxesse paz a elas de forma que elas pudessem viver e praticar, eu o faria. O medo no meu coração deu lugar a um amor poderoso. Dois córregos de lágrimas corriam e corriam. Estas foram as primeiras lágrimas derramadas desde os acontecimentos em Bát Nhã até agora. Estas gotas de lágrimas vieram de uma fonte de amor ilimitada.
Às cinco da manhã seguinte, nós fomos para o ônibus, uma por uma, para irmos ao templo Phuoc Hue. Eu estava na segunda viagem. Olhando os rostos de minhas irmãs – tão jovens e inocentes e puras – meu coração sacudia com uma dor lancinante. Começamos a cantar “Aqui está nossa amada Bat Nha”. Nós só tínhamos começado a cantar e os olhos de todos se tornaram vermelhos e cheios de lágrimas. Quando chegamos à parte “Aqui está nossa amada Bat Nha, com aqueles que carregamos em nossos corações o Grande Voto de viver juntos e construir a Terra Pura bem aqui...” não conseguíamos continuar a cantar. Somente chorávamos. O motorista nos viu, e ele também ficou comovido e chorou.